Healthtechs: O SUS deve protagonizar a inovação

Para sociólogo, não adianta fetichizar a tecnologia. A construção das soluções deve ter participação social, com educação e controle dos dados em prol de um salto na saúde pública coletiva. Ou em breve teremos o SUS submetido às big techs

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Leandro Modolo entrevistado por Andréa Vilhena para o Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz

As healthtechs têm atraído cada vez mais médicos e pessoas da área de TI, que juntos entram no mercado das startups, empresas que buscam soluções inovadoras, baseadas em um modelo de negócio escalável e replicável. Com o objetivo de atingir muitos clientes, utilizando novas tecnologias de informação e comunicação, as healthtechs são apresentadas como uma promessa de eficiência de gestão e ampliação do acesso aos serviços de saúde. As propostas parecem resolver muitas de nossas mazelas, mas será que os problemas de saúde em um país como o Brasil podem ser respondidos por soluções técnicas? Qual o papel da sociedade para garantir que as novas tecnologias estimulem, de fato, a democratização do acesso à saúde? Como elas se diferenciam das tecnologias de comunicação e informação utilizadas na área de saúde até aqui? Que tipo de formação o país precisa oferecer para garantir que seus cidadãos se beneficiem das tecnologias digitais? Para debater essas e outras questões e contribuir para o debate a respeito do impacto que a adoção das healthtechs podem ter para o SUS, o CEE-Fiocruz conversou com o sociólogo da saúde Leandro Modolo, que atualmente é doutorando em Saúde Coletiva na Unicamp, onde se dedica a pesquisar a saúde digital, em particular os aplicativos de automonitoramento da saúde do trabalhador.

Em sua avaliação, as healthtechs democratizarão o acesso à saúde de qualidade?

As healthtechs carregam uma ideia pela qual as tecnologias por si mesmas são capazes de resolver nossos problemas, baseada na ideologia californiana do ‘solucionismo tecnológico’, oriunda do Vale do Silício. Penso que, se olharmos dessa forma, incorreremos em um grande equívoco. É um fetichismo pensar que os problemas sanitários, os problemas de saúde em um país como o nosso podem ser respondidos por soluções técnicas descoladas de questões políticas.

Considero as healthtechs como startups, um modelo de negócio, não como artefatos técnicos propriamente. Não podemos pegar um aplicativo na mão e dizer: isso aqui é uma healthtech. O produto das healthtechs pode ser sim, por exemplo, um aplicativo, algo em que a gente coloque na mão, mas healthtech é um novo modo de gerir um empreendimento em saúde. É importante ter isso claro, porque no mesmo ambiente em que se está incubando uma healthtech, pode-se estar incubando uma fintech, isto é, uma solução relacionada ao capital financeiro ou tantas outras ‘sufixo-tech’.

A forma de se entender a inovação é atravessada por um conjunto de valores e ideias, partilhado por diversos setores e diferente do que se tinha no passado. As startups são um modelo de negócio decorrente de uma nova ideia que promete se viabilizar como produto ou serviço e que, para isso, precisa convencer ser potencialmente escalável– lembrando que essa questão da escala está vinculada às possibilidades oferecidas pelas tecnologias de informação e comunicação de pensar a inovação de forma democrática, ou seja, que qualquer um, em tese, pode inovar. A inovação realizada por um indivíduo, dentro de seu escritório, no fundo de seu quintal, pode ganhar escala muito rapidamente e ser um sucesso.

De que modo isso se daria?

Se você tiver um celular ou um notebook e souber programar, pode em tese construir um aplicativo, desenvolver uma nova solução de gestão de hospital, de atenção primária ou de cuidado à saúde da mulher. Foi assim que surgiram o Facebook e outras plataformas, muitas vezes, a partir de trocas entre amigos dentro de uma faculdade, que se reúnem de madrugada para pensar uma solução tecnológica. As healthtechs, nesse sentido, se propõem como democráticas e escaláveis.

Um exemplo trivial para me fazer entender: se você lançou hoje um canal no Youtube de atenção à saúde, de cuidado à saúde mental e de bem-estar, por exemplo, em um ou dois dias, pode escalar para milhões de visualizações e conseguir monetizar. É claro que esse exemplo de um canal no Youtube não é comparável, em termos de conversão monetária e complexidade, a uma tecnologia produzida para um hospital, mas, em essência, o que é vendido como possibilidade no mundo das healthtechs é isso. Um médico pode, com seus amigos médicos, dentro da faculdade, criar uma inovação para solucionar os problemas da saúde brasileira – é dessa forma que o tema está sendo propagado nos corredores dos cursos de Medicina.

No entanto, precisamos ponderar tudo isso. Ao pensarmos nas healthtechs como startups voltadas a solucionar problemas na área da saúde, não devemos esquecer que seus desenvolvedores buscam soluções que sejam lucrativas. As startups requerem aporte financeiro de capital de risco para se tornarem empresas valiosas. Esse é o horizonte que direciona os médicosstartapeiros’ e o pessoal de TI quando se unem para pensar nessas soluções.

A solução dada, por exemplo, pelo mundo corporativo das healthtechs para a epidemia de transtornos mentais de trabalhadores e trabalhadoras, que atualmente responde por uma das maiores taxas de sinistro em seguros no mundo do trabalho, são aplicativos de controle do bem-estar. Achar que isso vai solucionar a saúde do trabalhador é fingir que não existe uma grande crise na forma como se gere a força de trabalho dentro das empresas. Outra questão é pensar que seria possível resolver os grandes problemas sanitários e de saúde com uma solução tecnológica tal como um aplicativo para o bem-estar do trabalhador ou um aplicativo para as mulheres controlarem sua fertilidade em um país que vive a pobreza menstrual. O ‘solucionismo tecnológico’ que hoje também é presente no campo da saúde é a atualização de velhos fetichismos.

A saúde tem seus determinantes sociais, políticos, econômicos…

Sim. Isso parece reforçar uma das grandes críticas da Reforma Sanitária, de que os problemas de saúde são problemas coletivos e, portanto, devem ser resolvidos por políticas públicas em sua dimensão comunitária, social – e não meramente individual. É lógico que as doenças acometem um corpo individual, mas as causas não estão necessariamente na individualidade, elas podem ser resultado das relações sociais, do lugar onde as pessoas vivem e trabalham e do metabolismo orgânico que o homo sapiens estabelece com a natureza. Os transtornos mentais estão aí como uma das grandes evidências disso.

Se entendemos as healthtechs como um modelo de negócio, se elas podem padecer de um fetichismo, de um ‘solucionismo tecnológico’ que não responde aos interesses da população, a pergunta que temos que fazer é: Como podemos construir um outro conceito de inovação tecnológica em saúde para dar conta da democratização? Qual é o papel da sociedade nisso?

Estamos falando da velha bandeira da participação popular; não podemos concordar que luta pela democratização da saúde possa ser reduzida à participação de incubadoras corporativas, de capitalistas de risco à caça de um novo grande empreendimento e de médicos ‘startapeiros’, que olham para o prontuário eletrônico do seu paciente do mesmo modo que acompanham o dashboard de seus investimentos financeiros. Democratização é trazer a população – os profissionais de saúde e os usuários – para participarem do processo de constituição dessas tecnologias, da concepção à implementação. Do contrário, transforma-se o usuário-paciente apenas em objeto de pesquisa, consumidor e fonte de dados, que é a matéria-prima do capitalismo digital.

Como essas novas tecnologias se diferenciam das tecnologias de comunicação e informação utilizadas na área de saúde até hoje?

Os modelos de negócio em que essas tecnologias se desenvolvem são diferentes. Não se pode comparar um telefone antigo com um smartphone atual; um está ligado constantemente na internet, vinculado à web, como uma tecnologia ‘inteligente, o outro, não. Resultam de formas diferentes de produzir tecnologia e ciência. Como defensores do SUS e de tecnologias de saúde que atendam as demandas da nossa população, se não olharmos para o processo produtivo da tecnologia, e nos detivermos somente na sua interface final como produto, cometeremos um equívoco. O produto esconde o processo, e este último é o mais importante. Esse é o primeiro ponto que quero destacar: os modelos de negócio são diferentes.

O segundo diz respeito à importância e o valor dos dados nas novas tecnologias. A telessaúde dos anos 1990, começo dos anos 2000, utilizava um telefone analógico, em que o fluxo de dados não era capturado. Naquele momento, o que fazia a economia da telefonia girar era basicamente o tempo do uso do aparelho; na conta de telefone, conferíamos esse tempo do uso para fazer o pagamento. Hoje, os dados colhidos nessa transação representam uma das riquezas mais valorosas do capitalismo contemporâneo. As empresas mais ricas do mundo vivem hoje justamente do agenciamento desses dados.

As pessoas tendem a comparar as tecnologias só olhando para a superfície delas. Então, consideram que a telessaúde, desde que começou a ser implantada no Brasil, já possibilitava dar assistência, por exemplo, ao médico do Pará. Sim, mas é preciso levar em conta que, hoje, essa assistência é dada pelo Zoom, pelo Google Meet, e está virando algum tipo de informação ou dado. Existe todo um debate sobre quais são essas informações e esses dados, sobre anonimato, privacidade etc.; ou seja, aquilo que era antes um subproduto quase dispensável – os dados produzidos durante o processo de comunicação – hoje é o objeto central de acumulação de capital. Nesse sentido, são tecnologias qualitativamente distintas.

E as tecnologias podem ir se cruzando umas com as outras e produzir novos dados, fugindo ao nosso controle…

É um ecossistema, ou melhor, uma infosfera, para usar o termo cunhado pelo Luciano Floridi, filósofo italiano, que trabalha com essas questões de ética na informação

Que tipo de formação o país precisa oferecer para garantir que seus cidadãos se beneficiem dessas novas tecnologias digitais?

Em termos probabilísticos, quem adoece? Os mais idosos, e esses têm muita dificuldade de lidar com as tecnologias digitais. Como estamos dentro de um processo de transformação tecnológica em que os resultados vão demorar um tempinho para serem de fato disseminados e operados pelo SUS, temos que pensar na formação do jovem que daqui a tantos anos vai adoecer. Temos também um desafio geracional: educar os mais idosos para hoje, porque eles têm muita dificuldade de pegar o smartphone, inserir informações e usá-lo de forma minimamente crítica. Esse processo envolve a anuência a contratos e uso de dados privados. O idoso ao abrir um aplicativo, por exemplo, de um plano de saúde suplementar e encontrar vários itens relativos à política de privacidade, ele lerá tudo aquilo sem orientação de alguém? Ao concordar, vai começar a produzir dados sensíveis da sua saúde.

E não só o idoso… Há uma população em situação de vulnerabilidade social, com acesso desigual a tudo: à educação, à internet. E são essas pessoas que mais precisam da atenção à saúde.

Sim, com certeza. Costumo pensar nessas duas camadas. Primeiro a divisão etária, a dificuldade dos idosos com essas tecnologias, que é transversal a todas as classes. Isso fica ainda mais sobrepesado em um país extremamente desigual como o nosso, com essas dificuldades etárias localizadas no interior da divisão de classes sociais. Temos um país de analfabetos funcionais, um país em que há um déficit brutal de incorporação das tecnologias digitais até mesmo nas escolas. Mesmo em São Paulo, o estado mais rico do país em termos de PIB, as escolas têm computadores péssimos, internet péssima. Como vamos formar os jovens, capacitá-los tecnologicamente, alfabetizá-los digitalmente?

Precisamos estruturar as escolas. Então, mais uma vez, percebemos que o problema do SUS, nesse caso no interior da transformação digital, não é um problema setorial. Teremos que pensar em soluções globais que envolvam saúde, educação e infraestrutura. Essa é mais uma razão para levantarmos a bandeira da ‘refundação do SUS’ como um projeto nacional soberano!

Para capacitar os jovens para esse mundo digital, será preciso estruturar melhor as escolas. E quanto aos mais velhos, como ajudá-los nessa transição?

Temos que pensar, também, em políticas de educação para programas voltados a jovens e adultos que não completaram o ensino médio, como EJA, por exemplo. Nesse caso, já há uma logística e cabe ter vontade política. Lembra como foi a campanha de vacinação com o Zé Gotinha no passado? É preciso uma política forte do SUS de alfabetização digital que não se resuma apenas a formar jovens como usuários.

Teria que ter uma formação crítica para além da capacitação técnica?

Não só crítica. O jovem brasileiro sabe pegar o smartphone, sabe mexer muito melhor do que eu, sabe usar a interface gráfica, mas não sabe programar. Então como pensar em uma população que vive no século XXI, em que falamos de inteligência artificial, com a juventude não sabendo a linguagem de programação, não sabendo manipular minimamente essa enxurrada de dados? Isso, em alguma medida, vai ter que chegar às escolas, pois estamos numa disrupção tecnológica. O jovem tem que saber minimamente o que está acontecendo por detrás do aplicativo que utiliza, senão, será manipulado. Precisamos ter coragem e ousadia para trazer essa pauta. O futuro pode ser o das desigualdades sociais brutalmente acentuadas, em função do uso dessas novas tecnologias.

Qual a perspectiva de incorporação das healthtechs pelo SUS e que tipo de mudança na atenção primária essa incorporação acarretará?

Essa incorporação está sendo feita, infelizmente, ao sabor do mercado, com pouca indução, coordenação e intervenção do Estado. E quando o Estado intervém, é para auxiliar iniciativas privadas que foram incubadas em projetos corporativos.

Então elas já estão sendo incorporadas pelo SUS?

Ainda são poucas e muito focalizadas. Temos, por exemplo, o ConectSUS , aplicativo do Governo Federal para acesso aos serviços do SUS de integração de dados de saúde dos cidadãos. Não consigo ver, a não ser nos hospitais e unidades de saúde, no que diz respeito aos prontuários eletrônicos. A incorporação ainda está muito mais voltada, a meu ver, para gestão, do que, propriamente à incorporação direta das healthtechs nos diferentes níveis de atenção à saúde.

Que tipo de mudança prevê na atenção primária, quando esse tipo de incorporação tiver início?

Se pensarmos na atenção primária em sua face mais simplista e superficial, que é a de porta de entrada ao serviço de saúde, essas tecnologias podem ser vitais para solucionar muitas demandas. Eu me coloco no lugar de crítico a essas tecnologias, mas não sou um crítico tecnofóbico. Seria sensacional o cidadão ter seu primeiro contato com o sistema de saúde, sem sair de casa, pelo smartphone ou tablet, e passar por uma triagem à distância. Isso solucionaria um dos principais problemas do SUS atualmente, pelo menos na atenção primária, que é organizar as filas, organizar oferta e demanda. Ao mesmo tempo, podemos de novo cair num grande fetichismo se olharmos somente essa interface.

Se fala muito da telessaúde como um trampolim de acesso à saúde primária levando a atenção à saúde aos rincões mais desassistidos do país. Nosso país é muito grande e não conseguimos manter um médico ou um corpo de profissionais de saúde no interiorzão mesmo oferecendo salários altos. Se olharmos por esse ângulo, faria sentido a utilização da telesaúde. Mas esse olhar em relação ao emprego dessas tecnologias não pode ser superficial. Se acharmos que vamos resolver o acesso para esses lugares desassistidos através do empreendedorismo corporativo, levando um serviço de atenção primária, padeceremos de fetichismo novamente.

Por quê?

O que rege a economia das healthtechs é o lucro. Se não houver lucro máximo, o investidor de capital de risco vai procurar outra startup. Como, no interiorzão, uma healthtech vai conseguir engajar consumidores, usuários nas suas tecnologias? Na escala que eles exigem para incremento de receitas não vai, mesmo porque essas regiões são pouco populosas e essas startups querem escala de milhões. Vai ser prestado o serviço lá, mas vão garantir a lucratividade barateando os serviços oferecidos. Como se barateia o serviço, em termos de tecnologias digitais? Retirando-se o humano e colocando-se o robô, transformando um atendimento que deveria ser feito minimamente por um ser humano em chatbot. Qual a tendência, se não tivermos uma regulação forte, um poder de indução e coordenação forte do Estado e da própria sociedade nesse tipo de oferta de serviço? Qual vai ser a qualidade de serviço ofertado a quem mora no interiorzão, por exemplo? Se não tiver um Estado forte que possa garantir a qualidade de serviço, a startup, com o capital de risco nela investido, não vai estar nem aí para essas pessoas. Elas vão ser acolhidas por um robô, por protocolos de callcenter

Quanto ao compartilhamento de informações de usuários do sistema de saúde, que impacto poderíamos esperar?

Fala-se muito de privacidade e anonimato. É uma pauta inquestionável, mas eu queria focar em outro aspecto: temos uma oportunidade inaudita para a história da humanidade de inserir, em uma mesma rede, informações e dados produzidos em diversas áreas do conhecimento, da Sociologia à Medicina mais especializada, do médico de família ao terapeuta ocupacional, que poderão ser trabalhados e lapidados a fim de gerar conhecimento de ordem populacional e singular como nunca foi possível. Quem está fazendo isso agora? Como isso está sendo feito agora?

Com tristeza, digo que o SUS, o Ministério da Saúde e o Brasil não aproveitaram a grande oportunidade aberta pela pandemia de Covid-19 para tentar de alguma forma construir isso ou, ao menos, alicerçar algo que viabilizasse efetivamente um grande ecossistema digital no qual informações de todas as áreas do conhecimento entrassem em comunicação. É o desafio da interoperabilidade. A questão é que ainda hoje a gente continua achando que ao sabor do mercado vamos conseguir solucionar a interoperabilidade. Não tem como, porque as empresas querem esses dados para elas, mas não querem partilhar os delas com a população. Querem que o Estado partilhe o DataSUS com elas, que os cidadãos sejam totalmente transparentes, mas os dados e informações que detêm elas guardam a sete chaves.

No que diz respeito ao compartilhamento das informações dos pacientes pelas big techs, essa não é uma questão que envolve segurança de dados? Infelizmente, o que temos percebido é que nesse processo – que alguns chamam de colonialismo de dados –, os dados se transformaram em matéria-prima, insumo, recurso e, nas cadeias globais de valor se tornam muito valiosos. As big techs – Facebook, Google, Amazon, Microsoft e Apple, as cinco maiores – estão se consolidando em países com legislações frágeis e acumulando dados e mais dados.

Nosso fluxo de informações na web, nossa infosfera, é controlado pelas big techs. O Brasil não tem controle sobre isso, não tem poder de Estado para garantir uma regulação forte para esses dados, nem soberania em infraestrutura tecnológica, diferentemente da China, por exemplo. Para além das questões de privacidade – que aqui estou secundarizando, embora não considere isso secundário –, o Estado nacional brasileiro tinha até há dez, quinze anos, o monopólio de informações e dados epidemiológicos de sua população. Hoje, a tendência é as grandes corporações reunirem esses dados de toda a população brasileira, e de modo muito mais refinado, muito mais qualificado, muito mais pormenorizado do que o Estado, com computadores e poder de processamento muito mais poderosos do que aqueles que o sistema público tem. Em curto e médio prazo, o Estado vai ser um comprador de serviços dessas grandes corporações.

O que isso pode acarretar?

Boa parte dos dados já é armazenada em nuvens, como da Amazon. Em pouco tempo, vamos comprar serviços de epidemiologia das big techs. Não vamos mais estar produzindo os nossos dados. Pesquisadores das universidades terão que pegar dinheiro do Estado para comprar acesso a bancos de dados corporativos, porque a produção de dados epidemiológicos que o Brasil produz estará defasada em pouco tempo. Isso fere qualquer possibilidade do Estado ser soberano sobre a saúde do seu povo. Esse debate infelizmente ainda está muito raso, muito incipiente no Brasil, porque estamos nos pautando apenas pela agenda da privacidade.

Embora a preocupação do anonimato em relação aos nossos próprios dados individuais seja imprescindível para evitar discriminações algorítmicas, como no score da seguridade, por exemplo, quando se for contratar um plano de saúde; olhar só para isso seria uma grande miopia. Em termos de saúde pública e coletiva, o que é valioso nesse processo é a massa dos dados, é o dado populacional que as big techs estão interessadas.

Dá para ser diferente essa gestão dos dados, com a presença do Estado discutindo o que seria melhor para a população?

Esse não seria um desafio técnico, mas político, e que passa necessariamente por todo o debate que está de alguma forma na Saúde Coletiva, sobre a refundação do SUS nesse cenário – que é um cenário de oportunidades também. Estou falando como um jovem que ainda acredita numa sociedade mais igualitária, mais justa e livre. Até agora, não vejo coragem e criatividade, mesmo de organizações e entidades em defesa da democracia.

Temos as condições tecnopolíticas de promover a participação do povo, de todo indivíduo nas políticas públicas, de uma forma como nunca foi possível. Não podemos esquecer que até quinze anos atrás os smartphones nem sequer existiam. Hoje todo cidadão pode estar diretamente vinculado aos centros do poder e ter participação política com eles, por exemplo.

Se nos anos 1970, 80, a gente falava de participação do povo na construção do SUS, hoje, podemos radicalizar essa participação de forma a fazer força política contrária às big techs, porque elas não têm interesse em que o povo participe na deliberação de suas tecnologias. O foco delas é que o povo se engaje na produção de dados, só isso. Não querem o povo participando para regulamentar os seus algoritmos, para decidir que esses algoritmos não nos servem, porque são discriminatórios. Não querem isso.

Já pensou um SUS sob controle social em democracia direta? Em tempos que defender o mínimo já requer um esforço brutal, sei que é visto como romântico defender o que agora parece impossível, mas talvez seja justamente disso que precisamos para refundar o SUS e vencer o neofascismo: reconstruir utopias. E acho que este romantismo é o mais consonante com a velha bandeira da Reforma Sanitária, que via no SUS a pavimentação de uma nova sociedade.

Como o Estado poderia atuar nesse cenário?

Nessa refundação do SUS, ao invés de o Estado usar recursos e poder político para incentivar médicos startapeiros, mais interessados em fazer startups do que em cuidar das pessoas, por que não pegar a experiência do cooperativismo de plataforma e trazer para o SUS? A gente tem knowhow para isso. O que é a multiprofissionalidade? O que é o matriciamento dentro das unidades de saúde? Uma lógica interprofissional em que a participação do usuário está prevista. Por que não transformamos isso em tecnologias cooperativas, com participação de profissionais, usuários e policymakers, pesquisadores e universidades? Aí sim, haveria inovação como resposta à população, e não só ao bolso de alguns.

O que estamos produzindo nas universidades, hoje, é médico que acha que vai ficar milionário com uma grande solução, construindo grupinhos para incubar uma tecnologia e vendê-la no ano seguinte. E será preciso a big tech para fazer aquilo em escala. Qual a responsabilidade social pública de uma big tech com a nossa população? O médico fica milionário e vai embora viver no norte global. E a população brasileira? Isso é uma incongruência.

Como seria essa proposta de cooperativismo de plataforma?

Não tenho um design na cabeça. Vou aqui especular, porque acho que está faltando criatividade. A saúde coletiva conquistou o que conquistou porque, lá nos anos 1970, 80, tinha ímpeto e criatividade. Hoje, está acomodada na gestão. O cooperativismo de plataforma se daria de modo semelhante ao das plataformas que estão sendo criadas e geridas pelos trabalhadores de transporte. No caso do SUS, poderíamos olhar os matriciamentos como terrenos ricos para cooperativismo de plataformas. Da seguinte forma: existem os problemas individuais e coletivos que precisam ser resolvidos, um corpo de profissionais constituído – não são só médicos, todo um conjunto –, envolvendo, também, gestores e usuários, que vão tentar pensar nas demandas e construir soluções. Serão as nossas soluções, coproduzidas entre profissionais e cidadãos – não de dois, três médicos com uma ideia genial em uma incubadora corporativa tentando convencer o capital de risco a fazer um aporte milionário.

O SUS tem que usar as tecnologias digitais para integrar singularidades em uma mesma plataforma e equacionar demanda e oferta de forma supereficiente. Se pegarmos as experiências já existentes de matriciamento e transformarmos em plataforma digital, podemos replicar para todas as unidades de saúde e, daí, derivar soluções para responder aos problemas da população. Já existe, por exemplo, solução voltada a qualificar a vigilância participativa em dengue. Os capitalistas de risco estarão interessados em investir milhões nisso? Pode ser que sim, mas eu duvido. O Estado, no entanto, tem que estar!

Segundo o IBGE, entre 2010 e 2019, o Brasil gastou em saúde 9,6% do PIB e boa parte desse valor refere-se a despesas privadas. Em 2019, os gastos públicos na área correspondiam a apenas 3,8% do PIB. Assim, alguns especialistas apontam que o atual modelo caminha para o esgotamento. Como as healthechs seriam, nesse sentido, uma solução?

Não sou economista, mas quando a riqueza gerada pelo povo brasileiro no PIB volta para o privado e não para o público, por princípio político e ético, já considero um equívoco. A gente sabe que não volta para o público de forma equânime, volta como um serviço, mais caro e melhor de um lado, mais barato e pior de outro. Podemos pensar como as healthtechs podem entrar numa crise financeira, numa crise de recurso, que exigiria contingenciamento, exigiria teto de gastos. Isso não está longe, é questão política. Em um país em que a tributação sobrepesa o trabalhador que ganha um salário-mínimo e o milionário paga o mesmo imposto quando vai ao supermercado porque nossa tributação reside basicamente no consumo e não na renda, vamos ter que discutir isso com o povo. Se está faltando recurso, de quem vamos tirar? De quem tem demais, vive fora do país e não tem responsabilidade social com a saúde do nosso povo. Não é uma solução técnica. A técnica e a tecnologia aparecem como um meio para que a escolha política seja efetivada. Temos que fazer escolhas políticas que atendam os interesses do povo. As healthtechs podem entrar com o cooperativismo de plataforma vinculado ao matriciamento. Aí, é possível.

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